terça-feira, 16 de março de 2010

Dona Carmélia


Dona Carmélia, com seus noventa e poucos anos (nem ela se lembrava ao certo a idade que tinha), estava deitada já havia mais de quinze dias. Suas mãos e pés, ressequidos pelo impiedoso tempo que lhes corrompera, encontravam-se estáticos. Os olhos, fechados e que nem por isso deixavam de expressar toda a sua carga experiencial, pareciam ainda benevolentes, por mais que sua má sorte tenha tendado transformá-los em duas esferas frias e odiosas. O coração, fraco e debilitado, teimava em lutar contra a morte, mesmo sendo esta uma batalha desigual, pois certamente que se daria por vencido, fatigado e levemente humilhado, mais dia ou menos dia.
Em sua cabeça, contudo, percorria com passos largos ao encontro de pessoas que não foram amadas por criatura alguma mais do que o foram por ela. Lá estavam Seu Jorge, o marido, a filha Marina e Banzé, o cachorro. Quando ia ao encontro deles sentia-se, sabe-se lá porque, renovada. Tinha as mãos e pés suaves como nunca, desfrutava de um humor excelente e trazia na boca o hálito, há tanto esquecido, da volúpia.
O primeiro que ela viu foi Banzé. O cachorro, como sempre, viera a seu encontro trazendo-lhe boas novas, com seus latidos de uma criatura que só capta o que há de bom e maravilhoso à sua volta. Marina, que parecia ter também voltado no tempo, estava no auge de sua forma, com vinte e poucos anos e pretendentes, cheia de vida e com aquele sorriso lindo que parecia muito com a calmaria que viera após uma avassaladora tempestade. De fato essa sempre fora a imagem que o sorriso dela lhe passara, pois à tempestade dona Carmélia associava as dores do parto, e como fora despertada alguns minutos depois de dar à luz sua filha, a primeira imagem de Marina que ela teve foi ver em seus lábios, frágeis e suaves como uma pluma, um sorriso inocente e de cumplicidade. Seu Jorge, não espantosamente para dona Carmélia, se encontrava na mesma idade que ela parecia ter, estava também no auge de sua masculinidade e ainda não perdera aquele encanto que sempre demonstrara ao pousar os seus olhos no corpo moreno da mulher. Não é espantoso que ele estivesse nessas condições, pois ele jamais tivera a oportunidade de envelhecer. Ceifaram-lhe a vida subitamente, de modo brutal e sem justificativas.
Após os minutos de contemplação, em que não se fala nada e nem se ouve, apenas se olha e toca, Dona Carmélia pôs-se a falar, a perguntar-lhes como poderiam ter se reencontrado daquele modo tão misterioso e cheio de esplendor. Parecia que haviam tirado as pilhas do tempo, que ele parara e coincidentemente no melhor momento possível. Essa estranha sensação de um gozo completo durou pouco. Eis que dona Carmélia desperta e nada mais vê do que seus pés e mãos miseráveis, ouve seu débil batimento cardíaco e sente as dores do prelúdio à morte.
Olha em volta, envolta de anseios, à procura da imagem que há tão pouco tempo lhe fizera sentir-se tão bem, tão distante. Só o que vê é um vaso de flores com cheiro de velho, cores opacas e flores murchas. Passam-se longuíssimos dois minutos e ela continua a manter os olhos à procura de algo. Por fim cansa e adormece novamente.
No mesmo instante em que adormece ela acorda, mas novamente tem as mãos e pés reconstituídos pela cútis juvenil o que lhe causa uma impressão de estranheza, uma curiosidade que não fora tão boa quanto a anterior, mas que ainda assim é capaz de lhe elevar o espírito até alturas insondáveis. Agora, contudo, estão ela e Seu Jorge, apenas. Sente que o amor lhe tocara não havia muito, sentia isso no olhar de seu homem e em seus próprios corpos, ambos suados, extenuados e satisfeitos. Estavam deitados, lado a lado, olhando o céu estrelado e contando as estrelas. Seu jorge sempre lhe dissera que se amantes contam estrelas todas as noites, cada estrela contada seria uma garantia de mais um dia de amor, de suor e de satisfação. Sempre que podiam contavam estrelas e, deliberadamente, as aumentavam em número, pois cada qual queria mais e mais o amor do outro; o seu próprio amor. A contagem fê-la adormecer e ao despertar tinha mais uma vez os pés e mãos secos e doloridos.
Agora o quarto parecia um pouco menos claro, deve ter se passado um bom tempo pois o crepúsculo já não mais se fazia presente. As flores, sobrepostas em uma mesa próxima a ela, pareciam continuar murchas, sem cheiro e sem vida, como suas mãos e pés. Muito tempo se passou dessa vez, cerca de cinco minutos, e então caiu em um sono novamente.
Desperta, rapidamente e com uma leve desconfiança, pois que sempre que havia acordado nas últimas duas vezes tivera uma surpresa boa mas que em seguida fora quebrada por uma dor insuportável. As ilusões, quando postas a baixo, por mais que nos satisfaçam enquanto durem, fazem cair sobre os ombros um peso que inevitavelmente nos faz dobrar ante ele, e reerguer-se é sempre penoso, às vezes demasiado. Viu-se só, dessa vez, e igualmente linda e jovem como antes.
Sem nenhuma outra intenção, saiu a caminhar, aproveitando o toque gentil da grama sob sus pés. Havia orvalho e um cheiro campestre inundava-lhe as narinas. Narina, Marina, Menina. Palavras se confundem e a confundem. Marina parecia estar tão longe. Longe, Jorge, Hoje. Palavras mais confusas que surtem o mesmo efeito bizarro. Bizarro, Cachorro, Choro. Mais uma junção de coisas que aparentam não fazerem sentido mas que lhe são caríssimas e fundamentais, coisas que ela procura e não encontra, não toca, não beija e não acaricia.
Dessa vez o despertar foi ainda mais duro. Acordou e viu que as cores estavam muito mais opacas do que antes, muitos mais difíceis de serem diferenciadas. A única coisa que tinha uma cor que lhe definia a forma eram as flores: de um vermelho vivo;paixão e sangue. Surpreendentemente exalavam um aroma típico, forte e de presença inconfundível, um aroma de amor. Mas Seu Jorge já não mais se via por ali, nem Banzé e tampouco Marina, embora a narina, hoje, acontecimento bizarro, trouxesse do longe ao choro, a menina, o homem e o Banzé. E dessa vez Dona Carmélia cai em profundo sono, um sono do nada, para não mais acordar, recordar e respirar.

8 comentários:

  1. "As ilusões, quando postas a baixo, por mais que nos satisfaçam enquanto durem, fazem cair sobre os ombros um peso que inevitavelmente nos faz dobrar ante ele, e reerguer-se é sempre penoso, às vezes demasiado."
    Concordo plenamente com essa parte, nossa, que texto realmente magnífico.

    ;)

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  2. o texto consegue ser tao bom que nenhum comentário seria suficiente. na maior parte do tempo senti paz.

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  3. Como falei pro Gabriel, é um texto poético sobre a morte. Uma narrativa dolorida que nos faz ver que as coisas normalmente não melhoram. Desolador, mas real. Gostei muito . Continue.

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  4. quero ler com muita calma, estou bêbado, desculpa o momento, quer ler.

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  5. É bonito, tem umas descrições finas, com todas as palavras do dicionário! Ele fez uma morte que não precisa ser mórbida pra ser mortal.

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  6. Acabo de acender um cigarro para tentar, como tu pediste, ser "crítico" ao teu texto. E vou comentar sobre ele antes de ler os demais, para não fazer uma leitura contextualizada.

    Confesso que acho difícil avaliar ou analisar algo do que gosto, e tu se serve de recursos narrativos que me agradam muito. Brincar com as fronteiras do real e do onírico é uma das coisas que acho mais divertidas nessa coisa de literatura. E com o ritmo da tua escrita tu faz isso com maestria, chegando a me fazer pensar que o conto teria um final "fantástico" no qual não saberíamos o que era sonho e o que era realidade. Mas tu não caíste na tentação na qual eu costumo cair, e conseguiu compor uma narrativa com pleno sentido e verossimilhança.

    Também visualizo no teu texto uma capacidade de descrever experiências de forma vívida, capacidade que acho que perdi por excessiva exposição à textos filosóficos - ou em última instãncia nunca tive. Essa capacidade de transportar o leitor para a experiência do personagem é algo que acho louvável.

    O ritmo da prosa está impecável e acho que foi capaz de tornar tão interessante a riqueza das experiências dos sonhos/lembranças quanto a pobreza da experiência dos momentos finais da personagem.

    Uma única observação que eu faria é para com as passagens sentenciosas, como a que se refere sobre a decadência das ilusões. Como são geralmente descrições de aspectos muito gerais da realidade ou da existência, inevitavelmente fisgam o leitor mais pela força argumentativa do que pela "poeticidade" - e geralmente admitem seus contrários como verdadeiros. Não chega a ser uma advertência porque tu não abusou do recurso e se bem utilizado ele só faz ampliar o texto em sua profundidade, embora possa conduzir o leitor à uma linha de leitura desejada pelo escritor. Confesso que foi pelo abuso desse recurso que o romance de Milan Kundera me seduziu ao oferecer várias vezes um texto denso e que só não é meramente ensaístico por saber se mover com destreza nos limites mínimos do que seja um personagem e de suas experiências. Mas, como eu disse, é apenas uma observação, e a riqueza descritiva do teu texto o imuniza contra esse perigo - aliás, a maneira com que tu brinca com as palavras e sua sonoridade no final é um elemento literário tão rico e com o qual estou tão pouco acostumado que não sei como julgá-lo.

    De qualquer maneira, não tenho trânsito em teorias da literatura e esses comentários são mais registros de minhas impressões do que qualquer outra coisa. Reafirmo que é uma grande satisfação saber que decidisse publicar coisas desse tipo. Agora vou ler as demais postagens. :)

    Abraço!

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  7. Muito bom. Muito bom mesmo.
    Espero manter uma certa afinidade a esse blog.

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  8. Gostei da sutileza dos detalhes das emoções que nos faz sentir ao estar no lugar de Carmélia. A finitude que nos faz pensar no sentido que tem tudo isso que chamamos vida. Aquilo que nos identifica ao longo do tempo e que um dia deixaremos.
    Parabéns e um forte abraço. Guilherme

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