sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Colecionador


Como de costume, ele se levantara cedo, ainda não haviam penetrado no manto escuro da noite os imponentes raios solares, e a primeira coisa que fizera fora sua costumeira oração: uma oração de agradecimento e de proteção, sem exigência alguma à deidade com a qual mantinha uma íntima relação; apenas o que pretendia era ter com quem conversar, ter alguém que o ouvisse e por ele atentasse. Era um homem, de seus quarenta e poucos anos cuja aparência remontava ao seu improvável futuro, que vivia quase absolutamente sozinho. Só o que o acompanhava eram lembranças, que sequer dele eram.
Nada de sua infância o marcara (psicologicamente), portanto para ele era como se ela não existisse. A dureza de seus dias talvez tenha feito com que ele levasse isso para todas as suas representações de mundo, de modo tal que era um homem sem memória. A contra prova disso era a linguagem; evidentemente que não se aprende, literalmente, da noite pro dia uma nova linguagem, e como fora narrada, a sua primeira ação após acordar era fazer uma oração. Afora o encontro com o divino, nada nele, que ele tenha vivenciado, parecia existir. Era o homem de um dia só.
Após sua primeira e melhor refeição, que consistia basicamente em farinha e água, saía perambulando pelas ruas da cidade. Ainda escuro, passava na frente das casas desapercebidamente, a não ser o barulho que sua charrua fazia. Ele a fizera com suas próprias mãos em apenas algumas horas de trabalho, o que o havia deixado levemente orgulhoso. Sempre fora homem de muitos talentos, mesmo que alguns deles fossem um tanto nocivos e que desses, certamente, não se orgulhava.
Seguiu, então, à sua busca diária. Ia sorrateiramente remexendo nas coisas que outros haviam deixado para trás, mas que para ele eram especialmente importantes. Não se conformava com o fato de as pessoas, não necessitando mais de certas coisas, se desfazerem delas com tamanha frieza. Tudo que lhe parecia significativo era sumariamente recolhido e adicionado à sua já imensa coleção, que consistia, basicamente, em lixo, mas que para ele eram mais do que isso: eram objetos pertencentes a uma história, a uma trajetória vivida e, no mais das vezes, apreciada. Jogá-los fora era, para ele, uma grande ofensa que não poderia ser admitida como legítima.
Das coisas que encontrava e que lhe pareciam ter algum significado, algumas eram podres e maculadas, mas isso não lhe impedia de recolher, para si, tais podridões alheias. Não havia hierarquia no nível do lixo e, por conseguinte, nas memórias dos objetos que participaram da história de certos homens. Contudo, o que mais lhe interessava eram cartas. As cartas, quando jogadas fora eram uma afronta à sua concepção de mundo, tudo que lhe parecia razoável era desconsiderado por alguém que se desfez de tao sublime memória.
Apesar de ser seu adereço favorito à coleção, ele encontrara poucas no decorrer de toda a sua incansável busca. Ele, como já se viu, era um homem de um só dia, não se lembrava com clareza dos acontecimentos das pessoas. Sequer sua própria história era por ele acessada, o que fazia com que tivesse a sensação de a cada amanhecer estar irrompendo novamente no mundo, sendo lançado como o fora da primeira vez.
A essa hora o sol já despontava impiedosamente sobre sua tez negra e fazia-o suar e arder. Já havia se acostumado com as lesões solares, mesmo que ainda lhe causassem muitos incômodos. Continuou, pois, seguindo rumo àquela esquina, que para ele tinha algo de diferente; parecia já ter ali chegado, permanecido ou sonhado. Viu que à frente do poste de luz havia uma lixeira que lhe chamou a atenção; estava refletindo a luz do sol exatamente sobre seu olho. Era impossível não olhar naquela direção, mesmo que por um segundo, pois o reflexo insistentemente obrigava-o a senti-lo. Foi em sua direção. Durante este curto trajeto um pensamento assolou sua mente: certamente já vivenciara este lugar, nesta hora, neste lixo. Olhou para o fundo da lata e viu, entre outras coisas (podres, fedorentas e com uma cor ácida muito mais imperiosa do que o reflexo do sol), uma carta escrita por uma mão caprichosa e incansável. Ao pegá-la sentiu uma dor aguda e que parecia aquecer seu punho, que fluía como o bater cardíaco. Não lhe impressionou em nada tal ferimento, já que sempre, ao apanhar alguma memória de alguém, havia pagado por isso, e a dor é uma moeda corrente aceite em todos os lugares.
Sentiu-se entusiasmado, levemente eufórico e sem ar. Saiu à procura de um local apropriado para abrir tal memória e vê-la, admirá-la e, se possível,apropriar-se dela. Viu ao final da rua uma imagem tremida pelo calor do asfalto, e seguiu imediatamente até lá. Ao chegar, sentou-se à sobra de uma grande figueira que se estendia arrogantemente em direção do céu, fazendo as demais árvores parecerem absolutamente insignificantes. Estava cansado, havia percorrido longas distâncias e remexido em muitas mais memórias nesse dia. Resolveu deitar-se, esperar um pouco e depois aproveitaria o momento mais esperado por ele. Deitou-se e sentiu a leve brisa tocar-lhe a face umedecida pelo suor. A combinação de ambos deu-lhe a sensação de frescor, de renovação. O som que ouvia era um dos melhores: silêncio, quietude e tranquilidade. Fechou os olhos e acabou adentrando, lentamente, no universo do sono, na calma situação de inexistência.


(continua)
..................................................................................................

2 comentários:

  1. Não mexa nas memórias alheias!!! É crime...mas, deixe pra mim um pedacinho de papel, te contarei sobre o meu passado: preto, rico e abençoado de felicidade.

    ResponderExcluir
  2. Apenas a título de esclarecimento, gostaria de expor aqui o porquê de tão enigmático comentário. Isso surge devido à literatura corrente no Brasil que deixou de lado,por assim dizer, a cultura negra e a lançou pro subúrbio literato; esquecemos aquilo do que também somos constituídos.
    Neste meu texto, o personagem, que não tem memória e nem nome, não atua como repreentante de toda uma cultura; ele é singular e humano. Singular pois não queria dissolvê-lo nos esteriótipos vendidos por aí (e justamente isso, mau grado meu, pode ter acontecido) e humano pois não se trata de um horizonte manequeísta. Não se é bom ou mau em absoluto, há possibilidades inesgotáveis na vida dos personagens que podem fazer com que sua conduta venha a ser a mais variada, a mais desconexa (a mais absurda).
    Este personagem que acaba de nascer é apenas humano; nada mais, nada menos. Sua cultura (enquanto raça, credo ou time de futebol) não será por ele apagada e ele não é o símbolo universal que esgota toda a sua multiplicidade.
    Não se trata, aqui, de uma criação mirabolante e com propósitos doutrinários; uma exposição mefistofélica que visa tão-só o ultraje. Se preciso for, reitero que são apenas circunstânciais as características que formam tal personagem.

    ResponderExcluir