terça-feira, 16 de março de 2010

Previsão-Navalha


Como sempre, uma experiência marcante me pareceu digna de uma documentação literária. Andando a passos lentos pela cidade, observei, logo na primeira hora da manhã, uma mulher que me chamou a atenção. A atenção me permitiu lembrar dela depois, quando ocorreu o que em seguida narrarei aqui. A causa da atenção foi seu jeito simples, suas roupas de segunda-mão, seu cabelo descuidado, seu andar corcunda, sua aparência sofredora, a falta de dentes, o olho direito caído consideravelmente com relação ao esquerdo, o nariz um tanto sujo, os olhos desfocados e sem vida: eram olhos secos. A essa visão logo vêm a ideia de uma mulher desafortunada, sofredora e que possivelmente não teve as devidas (com toda amplitude de significação que se possa querer emprestar a esta palavra) condições possíveis para melhorar sua vida. Não quero, contudo, entrar neste âmbito de debates, só quero narrar o que vi e como interpretei isso tudo.
Estava uma temperatura agradável, o sol aquecia sem machucar e ao som dos pássaros tínhamos uma pequena imagem do que é um mundo razoável, um mundo que poderia oferecer algum conforto, a quem quer que fosse. Tão logo senti esse impulso, resolvi olhar para fora de mim e observar melhor não as coisas, mas sim as pessoas. Ao meu lado direito caminhava, lenta e pausadamente, uma mulher de aspecto destacável. Era aquela com roupas de segunda mão e toda aquela descrição que segue isso.
Quando passei por ela ela não me fitou, simplesmente continuou a observar com seus olhos secos e estáticos o todo e o nada. Seu olhar até chamou minha atenção, pois reparei que ela andava sem olhar onde pisava ao mesmo tempo que punha os olhos nessa mesma direção.
Segui meu rumo, passando entre corpos que sequer sei o primeiro nome, sentindo perfumes que sequer desejaria e vendo pessoas que tampouco sabia que existiam. Eles, os corpos, perfumes e pessoas, pareciam não me notar, e isso em nada me abala; pelo contrário, até me deixa, em certa medida, satisfeito.
Ao reencontrar com meus olhos aquela mulher que descrevi, não pude deixar de reconhecê-la. Estava, agora, sentada em uma mureta com outra mulher, de aspecto minimamente melhorado, conversando e ouvindo. Muito mais ouvindo do que falando. Essa mulher dava-lhe instruções, dicas, manhas, macetes, vários são os nomes dessa prática, para que ela vivesse melhor. Em troca, não que isso seja estatuído por formalidades ou coisas do tipo, mas por um pacto informal, a mulher de olho caído, cabelo desgrenhado, andar lento e olhos mortos lhe dava dinheiro.
Essa cena causou em mim um certo espanto, um mau-estar que não sei se conseguirei transportar para cá de forma satisfatória. A mulher segurava a mão da outra, a que tinha olhos e cara e jeitos de sofredora, e ia falando coisas da vida, sutilezas existenciais que só uma mente pervertida tem acesso. Tenho lá das minhas perversões, o que me permite entrar neste campo e tentar lutar com as mesmas armas.
A mulher que segurava a mão falava de coisas como "você teve isso e aquilo", "mas você terá isso e aquilo outro". A mulher que tinha a mão segurada ouvia passivamente e assentia sempre, já que lhe eram ditas as coisas mais intrigantes que já ouvira da boca mais intrigante que já lhe dedicara atenção: profecias de uma profeta. A natureza determinística do discurso, por si só já geraria uma série de difíceis questões a serem debatidas. O ponto que vejo aqui pode ser até mais superficial, mas me parece bem mais tenebroso. Não há, nessa prática, nada de positivo a não ser uma satisfação íntima que temos de sermos sistematicamente enganados. Era exatamente isso que a pobre-mulher (passarei a chamá-la assim, a mulher que tinha a mão segurada) queria, desde que surgisse daí algo de positivo. As coisas mais gerais ditas, as previsões mais estapafúrdias tinham, contudo, um valor bem específico e realista: 65 centavos, até onde vi a contagem.
De dentro de sua boceta ( a ambiguidade é proposital) ela tira toda a sua fortuna e algumas moedas. As moedas contabilizaram, até onde pude observar, 65 centavos inteiros e cheios de valor. A fortuna, segundo vejo, é a possibilidade. Ao aceitar as previsões que a outra lhe deu, a pobre-mulher se corrompe e vende sua possibilidade e seu absurdo para a outra, a detentora de toda série de acontecimentos possíveis.
Prefiro muito mais acreditar em Sartre que define o "futuro virgem" como toda aquela gama de experiências possíveis a que estamos sujeitos, e ele nos diz isso por menos de 65 centavos, do que ter tolhida de mim a horrorosa, porém mais verossímil, narrativa que comporta o absurdo da escolha. A mulher teve amputada dela algo que lhe custou em reais apenas 0,65, mas em um nível de existência, uma fortuna.
Não a culpo por inteiro, não poderia me deixar levar por um extremismo. Nem culpo a outra por inteiro. Talvez se somássemos a culpa das duas daria a culpa de uma, mas quem levaria isso pra casa eu não poderia determinar.
Quando vi essa cena fiquei enjoado e senti que minhas pernas precisavam de movimento e minha cabeça de repouso, ao contrário do que havia no momento. Cheguei à conclusão de que sendo elas íntimas uma da outra, pelo menos a partir do pacto silencioso que fizeram, ambas têm muito o que conversar e eu seria apenas um intruso, um invasor. Essa prática certamente têm um certo amparo constitucional, a saber, a liberdade de crença. Mas também tem um lado mais negro e criminoso da manipulação, da falsa consciência e da ignorância.
Talvez um projeto para fazer frente a essa prática-comum seja o AufKlärung, mesmo parecendo um tanto (ou um bom tanto) utópico em nossos dias. A mulher que segurava a mão da outra olhava com olhos de predador, um lince prestes a dar um bote, a outra, a pobre-mulher, por sua vez, sequer parecia uma presa, a não ser a de um abutre, já que tinha olhos mais mortos do que o de alguns cadáveres. Sua expressão era a de um completo vazio, e talvez isso se deva ao fato de ter sido retirada de si a incontável nuance de possibilidades futuras.

4 comentários:

  1. Caro Dietrich,

    Como disseste antes, "e assim seguimos no fim, fracos e sem levar uma só migalha". Cenas assim também me chamam a atenção. Se poderia chamar também de perversões a isto, minha reação a cenas do tipo é do riso à raiva. Esse ponto toca o âmbito emocional do humano, e argumentos possivelmente não convencem, nem esclarecem o porquê. Mesmo assim continuo respeitante à liberdade de crença. O ponto que ainda acho problemático, é quando a crença, acrescida de um impulso forte de que ela é a (e não uma) e deve ser transmitida aos "não-iluminados", transforma-se em ação e busca o subjugo dos desprevenidos. Isso, acredito, é o mais terrível retirar de alguém "a incontável nuance de possibilidades futuras" que pode acontecer.
    Belos e, também, bons textos,
    Um abraço do Fischborn ;)

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  2. Quantas interpolações, textos desse tipo não funcionam sem elas. PQP, sobrou até o Sartre entrou na jogada, mas eu concordo com a Aufklärung!

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  3. Gabriel,
    seria a "pobre-mulher" alguém incapaz de usar da própria razão e/ou conhecimento para fazer diferente ou mesmo não aceitar as profecias? Ou é mais cômodo aceitá-las para não precisar pensar e fazer diferente?
    Fiquei a pensar ......

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  4. Gabriel,
    seria a "pobre-mulher" incapaz de fazer uso da própria razão e/ou conhecimento para não aceitar as profecias?
    Ou é mais cômodo aceitá-las para não precisar fazer diferente.
    Fiquei a pensar ......

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