domingo, 7 de março de 2010

Vida de Barata


Hoje vi uma das cenas mais impressionantes de toda a minha vida. Impressiona não só por sua ocorrência, pois para tanto uma série de acasos deveriam se coadunar para que formasse, assim, uma cadeia de circunstâncias que permitissem, ou melhor, que possibilitassem este mesmo acontecimento.

Por volta do meio dia de um dia um tanto turbulento, que começara com sol e calor e que, paradoxalmente, à medida em que ia perdendo o sol ficava cada vez mais quente, houve a chuva para aliviar a terra. Estranha a relação entre a chuva e a terra, a chuva parece vir com uma certa arrogância, pois desce na direção dela, como aquele que se inclina em direção de alguém, se joga sem preocupação e sabe que dependem desse mesmo “lançar-se”.

A chuva desceu do céu à terra aos baldes, desde o princípio fora torrencial, durando por volta de 45 minutos. Com isso, e com nossas belas ruas impenetráveis pela natureza, impermeáveis pelo sopro de vida trazido pela chuva, surgiu um filete d’água em todo o curso do cordão. O filete parecia um pequeno filhote e o cordão um pai vigoroso e robusto, já bastante marcado pelo tempo; tal qual outro filhote, o filete seguia por todo o trajeto seu pai,o cordão. Como fora intensa, a chuva continuou a escoar, juntamente com os segundos que se passavam, por um bom tempo, o que permitiu uma vida mais longa ao filete: filhote de uma união entre naturezas diferentes, chuva e terra, suavidade e robustez, molhado e seco.

Olhando para a rua vejo surgir, como que uma folha ágil e opaca, dentre as pedrinhas soltas do asfalto, uma barata elegantemente reluzente pela chuva, como um carro que brilha por ter gotas d’água em sua lataria. Ela vinha, em ofegante corrida, decidida a seguir uma só direção de modo que pode transpassar toda uma distância que para nós poderia parecer insignificante, mas que para ela decidiria sua vida. Veio, então, traçando uma linha reta, pois que assim a distância seria menor, e como era meio dia e a rua estava bastante movimentada, correria menos riscos, isto é, teria uma menor probabilidade de ser morta neste trajeto mais curto, mais rápido, portanto mais seguro. Não é só a lógica a responsável pelo seu inicial sucesso, pois que também o acaso lhe sorrira e permitira que nada de imprevisível e perigoso lhe acontecesse.

Feita essa primeira ofensiva, a barata passa à sua mais perigosa e torturante labuta, a saber, transpor o filete d’água. Sem nem mesmo conhecê-lo, a barata já o encara com um olhar de soslaio, desconfia que sua travessia (a de uma vida miserável que tivera do outro lado da rua para o que terá neste) depende totalmente da sua perícia, e sua perícia depende totalmente das condições em que o filete se encontrava. O filete, filho de um cordão vigoroso e já marcado pela linha do tempo,embora não sendo tão vigoroso quanto seu pai, demonstra já uma certa ousadia e insolência típica dos adolescentes. Certamente o ciclo de vida dos filetes é diferente, pois que nascera a menos de 15 minutos e já se encontra na adolescência. Embora seu ciclo seja diferente do nosso, seus efeitos são semelhantes, pois se trata de um filete adolescente e que tem a rebeldia e força de um menino de quinze anos, impulsionado pelo vigor do pai e da tia gravidade.

Como quem teme hesitar de fazer algo extremamente decisivo, a barata fica pouco tempo analisando suas possibilidades e resolve logo partir pra sua infernal jornada. Joga-se, então, como que a uma nova realidade, uma hostil nova realidade e que lhe é o passaporte para outra, que sequer sabe qual será. À primeira investida segue-se a primeira queda, o filete de modo contumaz, lança forte resistência à barata, de modo que lhe faltam força e habilidade para equilibrar seu corpo n’água. Com essa primeira derrota, a barata desce dez insignificantes centímetros filete a baixo, que para ela são sem dúvida longos e importantíssimos centímetros. O que impressiona é o aspecto bizarro dessa luta. Com muita insistência e pouca prudência, a barata lança mais uma investida, e mais uma e mais outra, até que a fadiga chega e ela para por algum momento.

Nesse ponto ela já desceu mais de 15 centímetros, sendo vencida em astúcia e força pelo jovem filete, que agora beira seus vinte anos e começa a tornar-se mais pontual em seus ataques, sem aquela ingenuidade agressiva da adolescência. A barata luta para viver como se quisesse mostrar-se ao mundo, reproduzir e ter uma vida digna. Ela quer, com isso, passar à imundície deste lado, mudar os ares das imundícies com as quais sempre vivera. Com essa vontade de viver ela parece querer agredir aqueles que se sentem incomodados com sua presença e vida. A sobrevivência dela é tão incômoda quanto àquela de alguém que sofrera um grande acidente e que não obstante tenha sobrevivido, mesmo que com profundas e irreversíveis marcas. Essa demonstração de força certamente agride, pois que sua voracidade impressiona, já que estamos mais do que habituados a pensar em vontade e força, ainda mais num sentido vital, como apenas legítimo e belo com relação à humanidade, e mais, com relação à parte da humanidade em especial, uns tendo algo que outros não têm e que lhes permitem lutarem pela vida.

Breve foi o tempo de descanso da barata, e longa foi a sua labuta. Recomeçou do mesmo modo, violentamente se lançando sobre o filete, rasgando-lhe as entranhas e tentando penetrar-lhe à força. Conseguiu, com essa investida brutal, algum sucesso sem, contudo, atingir o objetivo. Caiu novamente nos braços do filete que a carregou com igual selvageria, pois a juventude sem a adolescência permitiu-lhe a força e a frieza para isso. Quando consegue se reerguer , a barata já está muito fraca e cansada. Aquela imagem inicial que tive dela, como sendo uma carro com gotas d’água a reluzir sob algum prisma desapareceu, pois parece ter envelhecido e secado absurdamente rápido durante todas essas investidas. Eu talvez não o tenha percebido pois prestava detida atenção em toda essa luta.

A última investida da barata foi seguida por uma reação muito mais violenta do filete. Agora parecia ter toda a experiência de seus 45 anos, sua clama e frieza, pois que assim que ela se lançou sobre ele, sequer lhe permitiu que penetrasse, nem minimamente, em suas entranhas. Logo que ela teve contato com sua magistral força, fora carregada à força para baixo, seguindo os seus próprios anseios como o filete, ainda indissociável de seu pai, seguia o cordão. Finalmente, após longos 40 ou 50 segundos, a barata chega a algum lugar. Certamente muito distante daquele que ela pretendia inicialmente, mais também certamente muito melhor do que toda aquela turbulência que a arrastava para baixo.

A barata sente-se segura, embora levemente ultrajada, ao agarrar-se em qualquer coisa que cessou com a violência do filete. Algo tão insignificante que sequer a barata sabia o que era tinha sido o mais decisivo para ela, pois lhe garantira a segurança e lhe dera uma chance de sobreviver. Saindo deste lugar a barata volta para o outro lado da rua, de onde inicialmente havia partido, do mesmo modo como havia deixado-o: em linha reta. Logo que chega lá se vê obrigada a recomeçar sua atividade de comer imundícies, as mesmas com das quais havia criado tanto asco , pois que as imundícies do lado de cá são aceitáveis, jamais podendo causar esse sentimento.

Acredito que a barata tenha atingido seu objetivo real. Passar às nossas imundícies de nada lhe vale, pois que as delas são puras e próprias. Ela conseguira chocar-me, pois ver aquela insistência em viver, em horrorizar , certamente fora algo notavelmente único. Sua louca, desesperada e violenta vontade de viver, seu desligamento de tudo pra conseguir isso, sua força jogada nisso de modo absoluto, tudo isso só faz com que me sinta menor do que ela, com menor força e vontade.

Passado todo esse tempo, volto a observar o filete e vejo que não há filete algum. Há, no máximo, uma frágil e lento fio d’água, que desce sem muita pressa e força, tocando lenta e suavemente o seu trajeto. Ainda ao lado de seu pai, que continua com vigorosa e rude aparência, o filete, que agora é um fio e que está como que nos seus 80 anos, segue rumo à sua foz. Penso que o rio e a vida tenham das suas semelhanças, pois não passam de um curso, com curvas, quedas, afluentes e que chegam sempre ao mesmo ponto, a foz. A vida termina em uma espécie de foz. O fio, antes de tão forte levara a barata à ruína, hoje sequer consegue carregar uma migalha, e assim seguimos no fim, fracos e sem levar uma só migalha.

3 comentários:

  1. Como eu disse, é uma crônica do Kafka, se ele escrevesse crônicas, ou se ele fosse o Luis Fernando verissimo. Muito Bom!

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  2. POraa niguem comenta essa merda e olha que nem ta tão ruim isso ahahahahah...o velho começa a divulgar isso no twitter que a galera começa a vim para o blog, muito boa suas crônicas....abraço

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  3. Muito bom Gabriel. Vou acompanhar seu blog.

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