quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Manhã


Acordou. Foi à cozinha. Colocou fogo na lenha e água na chaleira. O vento entrava sorrateiramente pela janela, a qual sempre, desde muitos anos, sempre esquecia aberta. Estava um pouco frio, ainda era muito cedo e a temperatura ainda era ditada pela noite anterior. Se perdeu em meio a longuíssimos pensamentos, que mesmo sendo simples, conseguiam tornar a cozinha vazia, mesmo seu corpo ali permanecendo.
Voltou-se para o fogão. Era rústico, não haviam ornamentos. Fora artesanalmente confeccionado, de modo que conservava a beleza da imprecisão humana. As simples falhas eram vistas principalmente nas pontas da parte rente à parede, como se pudessem ser menos percebidas dali. Era um capricho misterioso; justamente as partes menos às claras eram as mais vistas, e as mais vistas também eram sempre as mais lembradas.
Retirou a chaleira da parte mais quente da chapa e a colocou próxima a um dos cantos tão bem mal feitos. Estava no ponto. Com uma das mãos pegou a cuia e a acomodou tão bem à palma que elas pareciam feitas sob medida; a mão era feita para que a cuia melhor se acomodasse. Com a outra pôs a erva, que não era muita e que, à maneira da mão projetada para a cuia, fora projetada para a mão.
Agora empregava ambas como duas irmãs que pouco ficam próximas, mas que trabalham muito bem juntas. Com um curioso zelo, deitou a primeira como se fosse fazê-la adormecer e, em seguida, a sacolejou como se fosse fazê-la despertar. Repetiu algumas vezes o mesmo movimento.
Era destro, por isso buscou a chaleira com essa mesma mão, enquanto que a outra acomodava em segurança a cuia. Aproximou-as tanto uma da outra que a água escorria com naturalidade, resvalando sem deixar vestígios na erva, de modo que quando encheu suficientemente, a impressão que teve era de que nunca haviam sido duas coisas diferentes, mas que desde o primeiro momento eram uma só, tamanha a sua harmonia.
Aproximou uma velha cadeira de palha da janela, que propositalmente ficava o mais próximo possível entre fogão, chaleira, cuia, erva e janela. Sentou-se com a tranquilidade dos primeiros raios de sol que entravam na casa e, feito isso, provou do sabor amargo que vinha de mãos dadas com o dia. Não foram precisos mais de dois mates para que aqueles pensamentos simples retornassem, e com eles a infinita planície que à sua frente se exibia. Assim permaneceu até que a água esfriasse, o dia aquecesse e o pensamento se desvanecesse em fluídas imagens, que a mais nada poderiam corresponder.